Anne Tyng, Loius Kahn e os brinquedos

O frenesim tecnológico e científico que se viveu no pós-guerra europeu e norte-americano é bem testemunhado pelos meios de informação que, na altura, procuravam divulgar as inúmeras inovações que diariamente eram descobertas, inventadas ou produzidas. Entre as revistas, a Popular Mechanics Magazine era certamente uma das mais activas e, como diz o próprio nome, populares. Esta revista, cujo primeiro número é de 1902, já teve versões traduzidas em nove línguas e nos seus números podem encontrar-se artigos sobre os mais variados temas tratados de forma compreensível através de textos acessíveis e de imagens explicativas.

Uma das coisas mais divertidas é folhear números antigos e ver a ingenuidade com a qual eram aceites certas invenções e, entre estas, os brinquedos que eram pensados para as crianças. Já tive oportunidade de mostrar, por exemplo, algum dos jogos produzidos por Guilbert nos quais existiam substâncias radioactivas ou fortemente tóxicas. Noutros casos, havia quem se lembrasse de construir pequenos submarinos onde as crianças podiam entrar para navegar em pequenos rios ou lagos... ou ainda mini canhões perfeitamente funcionantes para mostrar aos filhos como funciona a artilharia.

Numa das minhas visitas aos números antigos da Popular Mechanics Magazine encontrei, no número de Agosto de 1950, um artigo sobre um projecto de um sistema de montagem que permitia construir ora brinquedos de grandes dimensões, ora peças de mobiliário para crianças.. Tratava-se de um conjunto de peças em controplacado recortadas, bastante engenhoso, com um sistema de encaixe extremamente simples, sem recorrer a parafusos ou porcas para a montagem. Entre as fotografias presentes no artigo havia uma da autora do projecto “make-it-and-brake-it”: Anne Tyng.

Este nome não me era completamente novo, não conseguia lembrar onde ou quando o teria ouvido, mas até as minha filhas de 7 anos sabem que com o Google já não existem secretos ou dúvidas...

Começou-se a fazer luz: Anne Griswold Tyng, nascida em Kuling, na província chinesa de Kiangsi, em 1920, é arquitecta e professora conhecida, entre outras coisas, pela sua luta pela emancipação da mulher no âmbito das artes. Anne sempre defendeu a importância da mulher passar de musa para heroína libertando, assim, o seu próprio potencial criativo.

Quarta filha de um missionário episcopal, em 1938 Anne aproveitou um dos regressos sabáticos da família aos Estado Unidos para ficar definitivamente neste pais. Após uma licenciatura no Radcliffe College, Anne Tyng foi, em 1942, uma das primeira mulheres a receber um Mestrado em Arquitectura pela Universidade de Harvard. Nesta faculdade chegou a ser aluna de Walter Gropius e Marcel Breuer.

Após a formação académica, Tyng começou a trabalhar no gabinete de Konrad Wachsmann, em Nova Iorque, na firma de design Van Doren, Nowland and Schladermundt e na Knoll Associates. Já o facto de ser uma mulher que aprendeu e trabalhou com profissionais e em escritórios deste calibre valeria a Anne Tyng um lugar de respeito na história da arquitectura moderna, mas o que a tornou mesmo famosa foi o que aconteceu depois de 1945.
 
Em 1945 Tyng mudou-se para Philadelphia e ingressou no escritório de Louis Kahn, que na altura ainda era sócio de Oscar Stonorov, onde participou em vários projectos, entre os quais o plano para Philadelphia (1946-52). Em 1947, Kahn desfez a sociedade com Storonov e a Tyng manteve-se no seu escritório onde ficou até 1964.  Durante este período participou em vários projectos de Kahn e, além disso, envolveu-se numa relação com este arquitecto da qual resultou uma filha, Alexandra. A “família” que Louis criou com Anne foi uma das três que este arquitecto foi criando e mantendo ao longo da sua vida; em 1947 Anne Tyng tinha 27 anos, era uma mulher bonita e inteligente e Kahn, como se veio a demonstrar mais tarde, nunca teve uma grande capacidade de resistência a estes argumentos...

A colaboração de Anne Tyng com Kahn é bem visível em projectos como a Yale University Art Gallery (1951-53), a Philadelphia City Tower (1952-57) ou o Trenton Bath House (1955-56); todas obras marcadas pelo rigor geométrico tanto no estudo tipológico como na composição arquitectónica ou nas soluções estruturais.

Sobre a relação entre Anne com Kahn poder-se-ia escrever muito mais, tanto um como outra eram pessoas especiais e do amor que os uniu, além de uma filha, ficaram as cartas que trocaram, entre 1953 e 1954, aquando Anne esteve em Roma, cidade onde nasceu Alexandra. Nesta obra, publicada por Anne Tyng em 1997, são recolhidas as 53 cartas que Kahn lhe escreveu, com uma frequência semanal, e onde se encontram, além das conversas privadas entre dois amantes, comentários sobre a situação política, sobre os colegas ou sobre a arquitectura em geral. Prefiro deixar ao belíssimo filme My Architect realizado por um dos filhos do arquitecto, Nathaniel Kahn, o retrato deste homem que morreu misteriosamente em 1974, completamente falido e sozinho.

Depois da saída do escritório de Kahn, Anne Tyng continuou a investigar a relação que existe entre a geometria e a arquitectura. Além disso foi produzindo muitos artigos sobre urbanismo e sobre a sua experiência profissional num campo dominado pelos homens. Em 1968 começou a ministrar cursos sobre a ordem geométrica e a escala humana na arquitectura, na Universidade de Pennsylvania, onde ficará até 1995.

Numa vida tão intensa, os brinquedos ficaram esquecidos e a autora, que ficou conhecida por outras obras, na altura ganhou uma certa notoriedade com eles. Se olharmos com alguma atenção ao artigo publicado pela Popular Mechanics e o relacionarmos com o contexto histórico, percebemos que os brinquedos eram, de facto, algo de muito inovador. Poder-se-á chegar a dizer que se encontram ao nível de outros brinquedos que lhe são contemporâneos como os do casal Eames, sobre os quais já escrevi, ou os de António Vitali, um designer de brinquedos suíço sobre o qual irei falar um dia destes. Feitos inteiramente em placas de contraplado recortado, possuem umas formas complexas de forma a servirem para, quando unidas, construir vários objectos muito diferentes.  Na altura o contraplacado era um material inovador; se quiséssemos fazer um paralelo com a actualidade poderíamos falar em kevlar ou em fibra de carbono. Era um material reservado à construção de edifícios ou móveis ou ainda, ao longo da Segunda Guerra Mundial, na construção de barcos ou de veículos para desembarque. Resistente mas flexível, leve mas duradouro aos elementos, o contraplacado era um dos materiais mais promissores da época; mesmo na decada de 1940 Charles Eames tinha começado a projectar e produzir as suas famosas cadeiras em contraplacado moldado.

Além da adopção do material, a ideia de que a criança possa mudar a sua envolvente e os seus objectos com extrema facilidade e rapidez é algo que, na altura, era extremamente inovador . Era inovador na medida em que se encontrava em sintonia com os movimentos filosóficos que, na altura, pregavam a necessidade de mudar os paradigmas de ensino. John Dewey (1859-1952), um filósofo norte-americano, foi um dos principais responsáveis pela introdução do Pragmatismo nas práticas educativas ao defender que a criança aprende sobretudo através da acção e não só através da observação ou do estudo. Neste sentido entregar à criança um objecto mutável, manipulável não era, de todo, algo trivial (o brinquedo “The Toy” de Charles Eames será produzido dez anos mais tarde). Além disso a complexidade geométrica das peças e das combinações possíveis demonstrava a vontade da autora em sensibilizar a criança para o conhecimento geométrico e compositivo através da brincadeira ou, em geral, da ocupação. Sentiu esta necessidade no duplo papel que tinha e que era, na altura, algo de muito raro: arquitecta e mãe.

Versão inglesa deste artigo.

Fontes:
http://www.philadelphiabuildings.org/pab/app/ar_display.cfm/21436
http://www.upenn.edu/gazette/0107/feature1_3.html
http://daddytypes.com/2009/10/13/holy_smokes_its_the_tyng_toy.php